Não caia no conto dos escritores fofos e desconstruídos

Que mané artigo reflexivo sobre marketing: tenho um assunto mais sério pra falar.

Diante do horror que tá sendo essa semana (sim, me refiro ao caso da Mari Ferrer e toda a humilhação), não consigo pensar em publicar algo pra te divertir.

Como mulher e escritora, te convido a pensar comigo sobre o machismo na área da escrita.

Sim, vamos falar de homens escritores. De homens vestindo máscaras. Do machismo disfarçado de palavras doces, pra te convencer. Pra te comer.

~Que porra é essa, Paty? Tá de palhaçada?~

Quem dera fosse uma piada… isso tudo existe e está mais perto de você do que eu gostaria.

Máscaras que nos convencem

Se você é mulher, provavelmente, já esbarrou com algumas dessas máscaras por aí: a máscara do cara ~desconstruidão~ e gente boa. Do poeta sensível. Do escritor querido, com olhar de anjo. Do artista que se importa com a causa das mulheres.

É fácil e gostoso acreditar nesses rótulos. Isso os destaca na multidão (e eles sabem muito bem).

Como mulheres, queremos admirá-los, queremos dizer que somos fãs, que os livros e músicas deles mudaram algo nas nossas vidas.

Deixamos outras mulheres para trás e exaltamos caras que não vivem a nossa realidade. Que nos ~ensinam~ a ser mais mulher. A ser mais interessante, mais atraente, mais o que você quiser.

E tudo vai dando certo, eles te ~ensinando~ e você acreditando. Eles te entretendo e você batendo palmas.

Você quase nem se lembra que existem mulheres batalhando por mais espaço, por mais visibilidade, por mais amor.

Tudo parece – e é – muito incrível quando você acompanha a vida de um determinado escritor. Você o admira de verdade: que gênio, que mente brilhante, que sacada, que cara diferente!

Até que uma de nós decide falar.

“Mas ele parecia tão fofo”: sobre manipulação e incoerências

Você já parou pra pensar na quantidade de homens sendo desmascarados só neste ano? Aqui, não me refiro apenas a escritores pagando de ~bonzinhos~.

Atores, jogadores de futebol, médicos, músicos, coaches, gurus espirituais… não vou citar nomes (dá um Google aí que tu acha), mas eu me choco todas as vezes que essas coisas vêm à tona. Porque, em alguns caras, eu realmente acreditei.

Esse baile de máscaras caindo, pra mim, é muito significativo.

Estamos vivendo um momento de transição: não só no trabalho, mas em todas as esferas. Tá todo mundo falando de vulnerabilidade (isso já encheu meu saco, na real), de ser quem você é, de se mostrar, de fazer o que tem vontade, de valorizar quem torce por você, de escolher quem te faz bem etc etc etc. Apesar de soar meio brega, tudo isso faz sentido. Quem não for de verdade, vai cair.

E aí eu te pergunto: esses escritores que você tanto admira estão sendo congruentes com o que você quer para si?

Será que você não tá sendo manipulada por um discurso inteligente, feito especialmente para você?

Será que você não tá idolatrando alguém que, no fundo, quer mais é que você se ferre?

Será mesmo que, se você decidir se tornar também uma escritora e começar a fazer sucesso, esse escritor de quem você tanto gosta continuará te incentivando e sendo gentil? Aliás, por que mesmo ele está sendo tão gentil?

Análise e manutenção do machismo

Tenho analisado friamente todos os escritores que algum dia admirei. Sério. Tenho me surpreendido com vários.

Tenho me sentido culpada por ter dado mais atenção a escritores de meia-tigela que me envolveram em suas narrativas do que a mulheres autênticas e inspiradoras.

Não me entenda mal: não estou falando da conduta impecável e do escritor sem defeitos.

Tô falando de quem permanece na manutenção de um sistema que oprime e agride as mulheres, de forma escancarada e sutil.

Tô falando de quem permanece alimentando atitudes machistas diante do cenário gritante que se apresenta.

É insano pensar que todos nós nascemos de uma mulher e que isso não basta para ela obter respeito.

Machismo é mesmo uma construção, uma tarefa diária. Ele começa pequeno e, aos poucos, cresce.

Sabe como? Assim:

  • O machismo cresce quando um escritor utiliza do seu prestígio para assediar ou difamar uma mulher.
  • O machismo cresce quando um jogador diz que a luta das mulheres é perda de tempo.
  • O machismo cresce quando um humorista consagrado assedia e ameaça, nos bastidores, as mulheres que trabalham com ele.
  • O machismo cresce quando um cara que nunca vi na vida me envia um convite no LinkedIn com uma mensagem do tipo ~Oi, minha linda~.
  • O machismo cresce quando um músico diz ter se inspirado na mulher que ama, enquanto ela espera, dentro de casa, por mais uma noite de agressão.
  • O machismo cresce quando um presidente diz que só não estupraria uma mulher porque ela não merece.
  • O machismo cresce quando, nas redes sociais, um cara publica #justicaparamariferrer, mas, no mundinho paralelo dele, continua falando bobagem naquele grupo do WhatsApp, cheio de vídeos pornográficos.
  • O machismo cresce quando um homem e seu melhor amigo se calam, diante de algo que ambos sabem que não está certo.

Me dói, por exemplo, ver um escritor que adora falar que apoia o feminismo, compactuando com outro que praticou estupro, assédio e o escambau. É incoerente, percebe? Não orna.

O machismo está nas sutilezas

Engana-se quem pensa que machismo é humilhar uma mulher em público, gritar, estapear, fazer cena no meio da rua, xingar, debochar. Machismo também é isso, mas não é isso.

O machismo é prejudicial porque se parece com um chocolate ruim numa embalagem bonita. Logo, ninguém desconfia.

Eu diria que o meio literário é o palco perfeito para que o machismo aconteça. A escrita transmite confiança e nos ajuda a criar uma imagem, uma expectativa.

É claro que ninguém tem que corresponder ao que estamos esperando. Nossas expectativas são nossas.

O ponto é que, por meio da escrita, um cara pode construir, com palavras belíssimas, um personagem para si mesmo e para quem o acompanha.

O machismo sutil, que fere as mulheres com um olhar, com um deboche, com um questionamento aparentemente inocente sobre a roupa, é o pior de todos, pois se infiltra com facilidade nas nossas relações.

“Você não é desconstruído: você ESTÁ se desconstruindo”

Sempre desconfiei de caras que afirmam que são desconstruídos.

Primeiro que, afirmando isso, subentende-se que não há mais nada para aprender. Segundo que desconstrução não é algo que você É e sim, algo que você FAZ.

É um estado constante de auto-observação. É quando você encontra coragem no silêncio.

Quanto mais você silencia, mais você consegue ouvir. Quanto maior o silêncio, dentro e fora de ti, mais você consegue perceber onde andou escorregando.

Quando um homem corta a nossa fala dizendo ~Sim, sim, já entendi~, ele não entendeu nada. Quando um homem fica dando palestrinha, como se não pudéssemos compreender a vida por nós mesmas, ele não entendeu nada.

Ah, e não custa lembrar: machista não tem cara.

Um escritor que se vende como sensível não precisa te dar um soco pra te machucar. Um fotógrafo abusador não precisa te tocar pra você ficar com nojo.

Atitudes machucam, mesmo a distância.

Portanto, abra bem os olhos. Observe os detalhes.

Saiba que o machismo não fica online o tempo todo: ele gosta de se esconder e de narrar histórias românticas, num quarto escuro. Ele gosta de vender livros sobre a vida e o amor, enquanto, do outro lado da tela, uma mulher assustada se pergunta quando é que acaba esse filme de terror.

Você tem algo a dizer?