Ano passado, lancei um livro no formato e-book Kindle, na Amazon. Embora o apoio das minhas tias fosse grande, a verdade é que elas mal sabem o que é um e-book. Que dirá um Kindle!
Uma delas, na brincadeira, veio dizer: ~Kinder Ovo?~.
E aí comecei a pensar no quanto podemos ser arrogantes, quando julgamos que todo mundo sabe do que estamos falando.
Estrangeirismo em excesso pode ser um sinal de arrogância
A inclusão de palavras estrangeiras na língua portuguesa é natural — a forma como a usam é que dói. Aqui, me refiro às palavras inglesas.
Com o avanço da tecnologia, o estrangeirismo beirou o insuportável. Veja se você se reconhece no trecho a seguir:
~Vou agendar nossa call, assim podemos fazer um brainstorm com mais tempo e calcular nosso budget, juntos. Quero seu feedback sobre aquele produto, hein, porque precisamos fazer um follow-up com o cliente, vai que ele tem mais know-how que a gente! Ah, e foco no deadline, que isso é prioridade.~
Essa foi a cara que eu fiz quando ouvi algo parecido pela primeira vez:
E olha que eu já fui professora de inglês. A questão não é apenas entender o que cada palavra significa, é moderar o uso.
Sorte a minha ter pais que investiram pesado em cursos de inglês para que eu aprendesse uma segunda língua, mas, e quem não teve essa ~sorte~?
Vê como soa arrogante quando você subentende que a outra pessoa está captando todos aqueles termos inglesados e tecnológicos?
Seria tão mais fácil falar em bom português:
~Vou agendar nossa ligação, assim podemos trocar ideias com mais tempo e calcular nosso orçamento, juntos. Quero seu retorno sobre aquele produto, hein, porque precisamos entrar em contato com o cliente, vai que ele tem mais conhecimento que a gente! Ah, e foco no prazo, que isso é prioridade.~
Às vezes, penso que o estrangeirismo é resquício da síndrome de vira-lata e da mania de achar que tudo que vem ~de fora~, do ~estrangeiro~, é melhor.
É assim que criamos egos engravatados e pessoas com ar de superioridade, que acreditam no intelecto acima da humildade.
Falar “estrangeirês” não te torna mais inteligente. Diante de tanta desigualdade social e pessoas que não puderam estudar, inteligência é se colocar no lugar do outro.
É claro que não temos como fugir de alguns termos, de tão enraizados, e nem precisamos fazer isso: acredito que a língua é móvel e se modifica o tempo todo. Mas gosto de pensar que há limite para tudo.
Abra mão da técnica e simplifique sua mensagem
É preciso ter paciência para encontrar um jeito simples de falar sobre o seu trabalho.
Escrever e falar difícil, enfeitando demais, todo mundo consegue. O desafio é se comunicar de forma clara, sem ruídos, levando em conta o nível de conhecimento da outra pessoa. A simplicidade é admirável, mas dá um trabalhão.
Vale repensar como você expõe o seu trabalho: a ideia é que tanto uma criança quanto a sua avó seja capaz de compreender que diabos você está falando.
Pensando nisso, como explicar o lançamento de um e-book na Amazon, sem deixar as pessoas com aquela cara de quem engoliu uma meia?
Tente trocar por sinônimos. Se o termo é em inglês e não tão conhecido, please, traduza. Vamos a um exemplo?
Você pode trocar…
…e-book por livro eletrônico ou livro digital ou ainda livro que só pode ser lido no celular ou no computador;
…Amazon por loja virtual que vende livros ou livraria virtual ou vitrine virtual;
…Kindle por aparelho onde se lê o livro digital ou uma tela que você carrega pra cima e pra baixo ou ainda um aparelho digital usado para leitura;
…download por fazer uma cópia;
…e assim por diante!
Facilite as coisas para quem não conhece o que você conhece. Nem todo mundo teve a mesma chance que você e algumas pessoas recém entraram no universo digital. Não custa ser gentil. Afinal, anos atrás, alguém também te ensinou como usar um computador quadradão, lembra?
E mais: se hoje você tá viciada no estrangeirismo, falando crush no lugar de xodó, no mínimo, é porque teve mais contato com a língua inglesa do que muita gente.
Não force a barra: tem coisa que não muda
Uma das minhas tias mais amorosas é também uma das irmãs mais velhas do meu pai. Ela sabe usar o WhatsApp, mas e-book Kindle na Amazon foi um pouco demais.
O diálogo que se seguiu, dias após eu explicar o que era um e-book e como fazer o cadastro na Amazon, foi mais ou menos assim:
– E aí, tia, deu certo?
– Ah, consegui, sim. Pedi para a sua prima e ela ajeitou tudo aqui pra mim.
Balançando a cabeça, eu apenas sorri: a língua é mutável e nossa capacidade de aprender, infinita, mas algumas coisas, realmente, nunca mudam.