Enfim, a hipocrisia: por que é esquisito celebrar o Dia internacional da Mulher?

Todo ano isso: perto do dia 8 de março, começo a passar mal. Não é frescura: é medo, mesmo.

Tenho contato com o feminismo desde que era adolescente. Rebeldes, eu e uma das minhas melhores amigas tínhamos a mania de usar batom vermelho, ouvir bandas de rock feministas e rejeitar os rótulos e felicitações robóticas pelo ~nosso dia~. 

Cresci e minha cara de quem comeu e não gostou seguiu comigo, diante de cartões, flores e bombons cor de rosa deixados na minha mesa de trabalho.

Minha palavra favorita para descrever o Dia Internacional da Mulher é HIPOCRISIA, assim, em caixa alta.

Neste artigo, vou explicar por que.

Você sabia que o Dia Internacional da Mulher é um dia de luta e reivindicação?

A origem do Dia Internacional da Mulher não é motivo de orgulho: cansadas de um ambiente de trabalho opressor, em péssimas condições de higiene, operárias saíram às ruas, em 1917, na Rússia, pedindo por comida e pela volta de seus maridos e filhos, pois estavam sendo torturadas. O cenário era a Primeira Guerra Mundial.

Conforme escrevi aqui, era 23 de fevereiro pelo antigo calendário russo, o que causava uma defasagem de 13 dias entre as datas da Rússia e do Ocidente.

De acordo com o calendário ocidental, o protesto se deu no dia 8 de março. 

Diante da comoção gerada, foi dada a largada para a Revolução Russa, e a data ficou marcada como o dia das “mulheres heroicas e trabalhadoras”, sendo oficializada pela ONU como Dia Internacional da Mulher em 1975, exatos 58 anos depois.

Flores para disfarçar o machismo

Essa história de dar flores no Dia Internacional da Mulher, exaltando a beleza e a delicadeza feminina (argh!), surgiu na Tchecoslováquia, com o Partido Comunista, que enxergou no gesto uma forma de apoiar as reivindicações femininas. 

O governo dizia, gentilmente, que estava levando em consideração todas as reclamações, agora toma aqui uma flor bem linda pra você se distrair.

Aliás, quando não era flor, optavam pelo chocolate (já percebeu como isso funciona até hoje, principalmente durante o período menstrual? ~Tá nervosinha? Peraí, vou te comprar chocolate~). 

Na minha visão, é como se não pudéssemos reclamar. Nem dos nossos hormônios somos donas, porque até nossas alterações de humor incomodam e têm de ser rapidamente amenizadas.

O fato é que de bobas as mulheres não têm nada: percebendo a estratégia do Partido Comunista tcheco de silenciá-las por meio de flores e doces, elas continuaram exigindo seus direitos e melhores condições de trabalho.

É por isso que eu e tantas mulheres não suportam a ideia de receber flores no dia 8 de março. 

O gesto de dar flores no Dia Internacional da Mulher, ainda hoje, significa a manutenção do patriarcado. É uma forma de nos ~acalmar~, de pedir que a gente fique confortável por ser mulher e não ter direitos. É um ~peraí, vou ver aqui e te aviso~ embrulhado em papel brilhante, com laço cor de rosa.

~Mimimi, mómómó, Paty, então não podemos dar flores nem oferecer chocolates a vocês no Dia Internacional da Mulher?~: enquanto as mulheres forem inferiorizadas, enquanto o machismo imperar na sociedade, enquanto você, homem, não aumentar o salário da sua funcionária e parar de julgá-la pela roupa que veste, flores e chocolates não significarão NADA. 

Motivos para não celebrar o Dia Internacional da Mulher

Que tal uma dose de realidade para chacoalhar o seu cérebro e repensar atitudes e argumentos frágeis (~mas eu te dei flores como demonstração de carinho, pela mulher incrível que você é!~)?

Desconstruir é um processo longo, mas vale a pena. Nossas mães, tias e avós provavelmente ficarão chateadas conosco diante do silêncio, mas tá nas nossas mãos explicar.

Ao menos, é o que faço todo ano, quando chega o dia 8 de março e os GIFs purpurinados com imagens de ~Feliz dia da mulher!~ começam a lotar o meu celular.

As mulheres são as mais afetadas pela pandemia

Tudo piorou para elas: desemprego, jornada dupla de trabalho, sobrecarga mental, exaustão com os filhos, sem contar as que não conseguiram escapar dos maridos abusivos e violentos. Desde o início da pandemia, o número de violência contra a mulher disparou. Os maiores agressores não estão na rua: estão em casa. E vale lembrar: se tratando de mulheres pretas, o número de casos é maior.

O marketing ainda gosta de mexer com a autoestima feminina

É interessantíssimo para a mídia e o capitalismo que as mulheres continuem competindo entre si e buscando beleza (padronizada, diga-se) a qualquer preço.

As mulheres ainda duvidam umas das outras

Eu não consigo engolir homens que ensinam mulheres como se comportar. Um escritor muito famoso, conhecido por escrever sobre relacionamentos, foi desmascarado por mais de uma mulher em 2020, mas adivinhe? Muitas não acreditaram, mesmo a vítima tendo denunciado, colhido depoimentos, provas e tudo o mais. A melhor parte? Ele taí, lançando livro, seguindo em frente, mas as mulheres que feriu continuam sendo questionadas.

O que as mulheres realmente querem?

Não conheço todas as mulheres do mundo, mas imagino que o desejo por respeito seja comum.

Esse respeito pode vir de várias formas:

  • Quando sou ouvida numa reunião de trabalho com homens, me sinto respeitada.
  • Quando escolho ficar e cuidar da minha família ao invés de investir na minha carreira e sou apoiada, me sinto respeitada.
  • Quando trabalho fora e não me chamam de mãe desnaturada, me sinto respeitada.
  • Quando não me julgam pela roupa que escolhi, me sinto respeitada.
  • Quando não colocam minha cor como empecilho, me sinto respeitada.
  • Quando não menosprezam minhas ações, me sinto respeitada.

Eu não quero promoção nem balões coloridos: quero ganhar bem, para comprar o que eu quiser, na hora que eu quiser. 

Eu não quero bombom rosa grampeado num cartão, quero passar pelo corredor daquele escritório onde só tem homem coçando o saco e não ser alvo de piada machista.

Quero viver sem medo de falar o que eu penso. 

Quero acreditar que amor não dói e que não há justificativa para receber um soco de alguém que diz gostar de mim.

Quero reconhecimento pelas minhas habilidades, quero figurar numa lista com outras mulheres incríveis, quero poder andar à noite, sozinha, olhando para as estrelas, sem temer o barulho de passos ou imaginar um estupro.

Quero viver em um mundo onde ser mulher não seja um fardo. Onde os abusos não sejam normalizados. Onde um presidente não diga que uma mulher merece ser estuprada. 

Quero viver num mundo onde eu veja perspectiva, porque, apesar de valente, eu ando cansada de lutar.

Quero viver… posso?

Você tem algo a dizer?