[Crônica] Ponto de encontro

Já era de noitinha. Eu estava esperando o ônibus, pois tinha planos com uma amiga lá do outro lado da cidade. Olhei para os lados e dei graças por estar só. Até que o vi virar a esquina e o coração deu um salto: droga, um homem. Já não ficaria sozinha no ponto. Ele sentou no banco, me olhou bem nos olhos e com um meio sorriso mandou a clássica: “Tá calor, né?”. Devolvi um “Pois é”, e entramos numa conversa trivial, que foi desde o horário do ônibus até aplicativos de celular. Ele não perdeu tempo: em poucos minutos de conversa, pediu meu telefone. […]

Marcamos de descer para a praia alguns dias depois, assim, na doida. Eu estava estressada, trabalhando em casa, querendo ver o mar e arejar a cabeça. Era o pico da TPM. Mandei uma mensagem impulsiva: “Me encontra daqui 15 minutos”. Ele topou na hora. Como estávamos a apenas algumas casas de distância, estranhei a demora. Fui ficando nervosa, com vontade de dar na cara dele e falar umas poucas e boas. Mas me esqueci disso tudo quando ele finalmente chegou, de camiseta regata, com os braços bem à mostra, sorrindo leve e me abraçando gostoso, já explicando o atraso. […]

Na praia, a conversa me surpreendeu. Ele era… único. Falava de relacionamentos anteriores com cuidado, sem ofender quem já tinha passado pela sua vida e sem atribuir toda a culpa à mulher, como geralmente fazem. Dentre tantas coisas, me disse que precisava evoluir como pessoa e que buscava autoconhecimento porque às vezes se sentia enlouquecer. Eu ouvia, paciente e encantada. Me via na sua fala, lembrava do meu próprio caminho e das minhas dificuldades. Quantos caras realmente têm a capacidade de admitir que a vida não anda legal e vão em busca de superar a si mesmos? Quantos caras se abrem tanto assim num primeiro encontro? Tem gente que não se abre nem depois de meses… Ele falava do que sentia como se nos conhecêssemos há anos. Eu estava achando o máximo, mas, a certa altura, percebi que eu não teria vez. Dei um corte sutil na conversa porque precisava confirmar a minha intuição: “Ei, qual teu signo?”. Assim que ele disse “Gêmeos”, eu bati as mãos e numa gargalhada respondi: “Eu sabia!”.

[…] Voltando pra casa, ele me diz que foi um prazer me conhecer e que está indo viajar sem data pra voltar. Aquilo me aborreceu. Me senti boba ao ver que a noite ia acabar daquele jeito: eu devia ter sido mais direta, devia ter dado um beijo nele, porra, até que enfim um cara querido que não tinha medo de se expressar, que me chamava a atenção! Mas não. Ingênua, achei que poderíamos nos ver de novo, talvez naquela semana ainda. A gente se abraçou, um pouco confusos, eu desejei boa viagem e ele foi embora. Entrei em casa com uma sensação estranha. Dramática, repetia para mim mesma que agora já era, nunca mais eu ia ver esse ser. A mente gritava desaforos, mas o coração estava calmo: como sempre, ele parecia saber que algo muito maior estava para acontecer.

Por uns dias, não tive notícia dele. De vez em quando, ele habitava o meu pensamento, mas era só. Diz a astrologia que geminianos são orgulhosos e raramente pedem ajuda. Por isso levei a sério quando, numa manhã tranquila, recebi uma mensagem dele dizendo que tinha dado tudo errado na viagem e que ele estava voltando em poucas horas. Pior: estava sem lugar pra ficar. Me perguntou se eu sabia de algum apê disponível. Eu não tinha nada em vista para indicar. Eu já havia passado por essa situação inúmeras vezes, então me coloquei no lugar dele. E não só, mas também por isso, mandei: “Enquanto tu procura, pode ficar aqui em casa”.

Sim: logo eu, que moro sozinha e amo minha independência. Como tenho uma gata que é dona do sofá, pensei em colocá-lo para dormir na minha cama mesmo. Ele, tímido, retornou: “É sério? Não quero incomodar…”. Por um momento, parei. Minha gata me encarava da janela. Respirei fundo, fechei os olhos e comecei a minhocar: será que era mesmo uma boa? E se ele fosse folgado? E se comesse toda a minha comida, e se nos desrespeitasse, e se…? E se nada. Confiei na energia boa que eu tinha sentido lá na praia. Peguei o celular, reli a conversa e digitei: “Vem”. […]

Arrumei a casa desesperadamente. Ele chegaria depois da meia noite. Por sorte, sou noturna. Trocamos algumas mensagens durante a viagem, ele ia me avisando em que pé estava. Confesso que não botei fé até ele aparecer. Ouvi a cachorrada do terreno latir e passos na escada: era ele. O recebi de pijama, levemente descabelada. Ele entrou sorrindo – como ele sorri leve! -, com c(al)ma, já me agradecendo. Mostrei o quarto, falei pra ele largar as coisas ali e ficar à vontade. Ele tomou banho, eu tinha feito o jantar. Comemos e conversamos um pouco. Era bom, era fácil: quase como receber um amigo de infância.

[…] Já tem mais de uma semana que parei de me perguntar o que estamos fazendo e me permiti sentir tudo que ele foi capaz de despertar em mim. Ele fica sem camisa, lava a louça, faz comida, eu corro e deixo a porta aberta, ele fecha, eu abro, ele entra, eu saio. Eu falo, ele ouve, eu penso, ele grita, eu grito, ele acalma. É louco, é cedo, é lindo, é fato: estamos morando juntos. Mergulhei numa intimidade nunca antes vivida. É um tipo de conforto que eu nunca senti. Abri mão da racionalidade e me deixei levar por ondas de prazer, de diversão, de parceria, de tesão, de tudo que alimenta e faz a vida ter mais cor. Mar agitado e ao mesmo tempo calmo dentro de mim. Não duvidei de nenhuma das nossas conversas: a gente tem a alma transparente.

Mas caras como ele – se é que existem! – não se aguentam: falar a verdade é parte do seu ser, doa a quem doer, seja onde tiver que ser. Compreendi isso quando, no meio de um filme qualquer, depois de algumas taças de vinho, ele virou pra mim, pegou na minha mão e admitiu: “Sabe… eu andei mentindo pra você”. Foi só ouvir essas palavras que o meu corpo se manifestou no mesmo instante: o coração acelerou, senti uma pontada na cabeça, apertei os lábios e endureci o olhar. Ele se ajeitou, tossiu um pouco, passou a mão pelo rosto e me encarou. Vi nos seus olhos uma intensidade assustadora. Fosse o que fosse: eu queria ouvir o que ele tinha pra falar. Por isso me mantive em silêncio e, no que me pareceu uma eternidade, esperei ele começar.

Aquelas pausas na fala dele estavam me enlouquecendo, mas eu contava até dez, virava mais uns goles de vinho e esperava pelo pior. Era nítido o esforço que ele fazia para me falar o que queria, e depois de algumas reticências, ele desandou: “Tá, é o seguinte, eu menti pra você, é isso, não aguento mais. Eu não tenho uma família que me apoia, eu não tive estudo, eu nunca pude contar com ninguém. Eu cresci cercado de gente malandra, eu cresci sentindo minhas energias sendo sugadas, como se estivesse sendo testado o tempo todo. Eu sou impaciente, desconfiado, eu sou todo errado. Minha vida inteira eu não soube o que fazer, eu só sentia tudo de uma forma que ninguém entendia… e me dói ver o mundo como ele é… achei que te contando histórias mais normais sobre ter uma família massa, como você tem a sua, eu poderia evitar de te assustar. Achei que você pudesse gostar mais de mim assim, sendo normal. Eu menti a minha vida toda, mas com você, eu não sei o que acontece, eu preciso ser verdadeiro, eu preciso te contar a verdade, mesmo que isso doa, mesmo que… “. Eu o calei com um beijo bem demorado.

Quando abri os olhos, vi uma alma toda nua, me olhando profundamente. Alívio: ele sabia que podia encontrar conforto em mim. Por isso continuou, baixando os olhos, o discurso que só me fazia amá-lo ainda mais: de que ele não tinha diploma algum, de que não tinha crescido na vida. Coloquei minha mão sobre a boca dele, e, entre risos, falei: “Você é tão ridículo! Olha aqui pra mim: você é o cara mais incrível que eu já conheci. De que adianta um puta diploma e pouco coração? De que adianta andar por aí engravatado, com um carro na garagem, cheio de dedos, e ser incapaz de se apaixonar, de ver beleza num pôr do sol, de saber tratar uma mulher? Vê se entende porque eu não vou repetir: você é o cara que eu quero pra mim”. Os olhos dele brilharam, ele me beijou forte, eu o abracei com todo o meu ser, e a compreensão deu lugar ao desejo: transamos no sofá.

[…] Ele dorme no meu colo enquanto penso. Acho que finalmente sou capaz de entender o que significa amar alguém. Eu o amo APESAR DE e não PORQUE. Eu o amo apesar de todos os seus defeitos e história de vida. Me vem Lispector na cabeça e uma frase em particular: “É preciso se entregar, é preciso confiar. É preciso amar… apesar de”. Eu não quero alguém perfeito. Eu quero alguém que diga tudo que ele me diz, alguém que me enxergue e mesmo assim não desista de mim. Alguém como ele, que não fez cara de espanto quando, na escuridão da praia, eu gritei “Quero você agora!”, e me pegou sem medo, porque éramos céu e mar, ondas e um pouco de falta de ar. Passando a mão pelo cabelo dele, me lembro de como é dolorido estar numa relação e se sentir só. Ele estava ali por inteiro. A minha racionalidade batia de frente com a impulsividade dele e se perdia. Dane-se a astrologia: quando um não quer, dois não ficam. E a gente, mesmo sendo tão diferente, a gente queria.

Do lado dele, eu me esqueço de que já estive em depressão, eu me esqueço de que correr não é o meu forte, eu não reconheço mais a pessoa sem sonhos e sem vontades que fui. Ele é meu ponto de equilíbrio e o ponto final a todas as minhas interrogações. A todas as minhas dúvidas.

Amor não dói. Amor não tem que ser difícil. Amor tem que ser fácil, amor tem que ser esse sentimento infinito que eu sinto. Pela primeira vez em anos, nada me fere: eu estou viva, e isso basta. Aconteceu quando eu menos esperava. Aconteceu porque eu estava pronta. Se vai durar, não vem ao caso. A ansiedade de relações anteriores desaparece enquanto o observo dormir: amor não é posse, não é preocupação. Amor é liberdade. De fazer o que se quer, de aceitar o que vier, de ser quem se é. Pela janela, vejo a Lua Nova. Me pergunto se sou merecedora de tudo isso, de tanto amor, de tanto carinho, de todas essas sensações… logo eu, que já fiquei dias no vácuo, que já me entreguei e não fui correspondida, que já tomei tanto na cabeça. É difícil de acreditar. Mas a Lua me sorri, e há estrelas no céu, que vêm sussurrar: você merece, você merece, você merece…

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