Tenho visto muita gente apoiando a campanha ~Cancela 2020~. Pesquisando sobre o assunto, achei até um abaixo-assinado americano (!) pedindo para as autoridades deletarem esse ano da nossa memória.
Uma certa agonia tomou conta das redes e é um tal de ~Cancela 2020~ para todo lado que se olhe. A frase virou meme, camiseta e o povo tá fazendo piada em cima dela, mas eu não tô achando nem um pouco engraçado.
Que 2020 não foi um ano fácil todo mundo concorda, mas, que negócio é esse de querer ~cancelar~ um ano tão atípico?
Senta aí que agora nós vamos conversar sobre o que pode significar tanta ansiedade para que o ano acabe e a gente entre logo em 2021.
O lado bom do lado ruim: o que você enfrentou em 2020?
Sinceramente, eu não achei esse ano horrível.
Tudo bem: não peguei o vírus (até agora) e não perdi ninguém que eu amava, o que não significa que não me deparei com algumas batalhas.
Não é questão de romantizar o sofrimento, a pandemia e toda a loucura que vivemos nos últimos meses. É questão de avaliar como você lidou e foi capaz de crescer no meio de tanta adversidade.
Não sei você, mas, pra mim, 2020 foi o ano em que retiraram a venda dos meus olhos. Vi muitas coisas doloridas ao meu redor; coisas que eu vinha fingindo não ver.
Vi minha saúde despencar, meu corpo pedir ajuda e a depressão tomar conta da casa e da minha alma.
Vi como o sucesso alheio incomoda e como pessoas que se dizem amigas são capazes de te apunhalar pelas costas.
Vi como eu lia poucas escritoras pretas e como a questão do racismo era menosprezada no meu círculo de amigas e na minha família branca e preconceituosa.
Em 2020, encerrei contrato com uma empresa que me pagava muito bem para me dedicar completamente aos meus projetos pessoais. Comecei a tomar antidepressivos e quebrei o mito de que psiquiatras só atendem gente doida.
Contei a meus pais, depois de anos, que sempre quis me suicidar e nossa união se fortaleceu. Demonstrar afeto e paciência com as dores de cada um virou rotina.
As lições foram duras e muitas vezes insuportáveis. Acredito que, para você, também. Em todo caso, é importante para a nossa saúde mental conseguir ver uma pontinha de luz em cada desafio.
Cultura do cancelamento, polarização e imaturidade
A cultura do cancelamento deu as caras em vários momentos de 2020 e o verbo ~cancelar~ passou a significar tudo aquilo que não se quer discutir: cancela essa droga/pessoa/empresa e pronto, assunto resolvido!
No entanto, não vejo isso como positivo.
Cancelar é polarizar, é reproduzir o comportamento de manada, é seguir o rebanho. O cancelamento está apoiado na lógica do punitivismo, do ataque público, da incapacidade de dialogar.
Para educar as pessoas e ajudá-las a refletir, é preciso olhar para tudo aquilo que dói e que não foi legal. Cancelar é passar por cima, é não querer conversar só porque o outro pensa e age diferente de você. Imaturidade, não acha?
A cultura do cancelamento não permite que as pessoas raciocinem e analisem de verdade a situação. É como se ninguém pudesse errar.
Cresci ouvindo que ~conversando, a gente se entende~ e levo isso comigo.
Em 2020, tivemos a chance de conversar com nossas maiores inimigas: nós mesmas. Tivemos a chance de olhar no espelho, de passar mais tempo a sós com nossas paranoias, de observar o que temos feito das nossas vidas.
Sim, muita gente perdeu o emprego, mas muita gente também só começou a empreender e se reinventar por causa disso. Sim, muita gente perdeu alguém importante, mas muita gente também só começou a valorizar quem ama por causa disso.
Estamos cansadas, sim: foi um ano exaustivo. O medo é real e a pandemia ainda não acabou. Mas será que faz sentido cancelar um ano inteiro só porque as coisas não saíram como você imaginou?
Aprendizados para o nosso ego
O ego é aquela parte nossa que fecha a cara e bate o pé quando algo não acontece do jeito que queríamos.
Gosto de pensar que 2020 veio para testar o nosso ego e colocar à prova nossa essência enquanto seres humanos.
O ego gosta do que é conhecido. A velha ordem cultural do mundo acompanha pessoas egoístas, que estão sempre na correria, que não conseguem parar um segundinho para olhar o outro, que acreditam que racismo não existe e que lá em março repetiam que o coronavírus era só uma ~gripezinha~.
Algumas pessoas nunca mais serão as mesmas (que bom!). Outras, infelizmente (ou felizmente?) continuarão iguais, servindo de exemplo sobre o que não fazer.
O ponto é que o estado natural das coisas teve de ser chacoalhado para que uns e outros começassem a acordar.
A desigualdade social ficou gritante, a natureza pediu socorro, o (des)governo mostrou a que (não) veio, o dinheiro perdeu para a saúde, relações abusivas foram escancaradas no meio da rua e dentro de casa, amizades tóxicas foram desfeitas, pessoas inseguras que duvidavam de si despertaram para correr atrás dos próprios sonhos, entre tantas coisas mais…
Por que deveríamos cancelar um ano que nos ensinou tanto? Que tirou de nós o controle (ilusório), que aproximou familiares e escancarou que sem saúde não somos nada?
Eu, hein.
2020 não tem culpa de tudo que te aconteceu e nem de espalhar o que você vinha jogando pra debaixo do tapete. 2020 te convidou a encarar a verdade. Então, pare de destilar ódio e frustração nas redes sociais. Ano ruim é a gente que faz.