[Crônica] O amor é de outra cor

Quando ela entrou na sala, eu fiquei muito sem graça. Ela era linda demais. Fomos apresentadas, e eu só consegui pensar que ela era a mulher mais linda que eu já tinha visto na vida. Eu não estava acostumada a esbarrar com pessoas lindas sempre, ainda mais naquele curso de tecnologia, em que todo mundo parecia tão sério e carrancudo. Ela não era linda só de corpo (ah, meu Deus) e rosto, ela era TODA linda: sabe gente que sorri com os olhos e tem firmeza pra falar? Então. Fiquei encantada. Me imaginei saindo com ela, tendo segundas (e terceiras) intenções. Me espantei com o meu próprio pensamento… até então, nunca tinha me sentido atraída por nenhuma mulher. Quer dizer, não daquela forma. […]

Sem saber, ela brincava com a minha imaginação. Não éramos muito próximas mas, um dia, ela pediu meu celular. Disse que podia ser útil, afinal, estávamos no mesmo grupo de estudos. Tudo bem. Numa noite qualquer, sem nada pra fazer, recebi uma foto dela mesma sorrindo, com batom vermelho, apoiada na parede do que me pareceu o banheiro da casa. Tinha voltado da balada e estava talvez alegre demais. O que no fim não fazia a menor diferença: aquele jeito espontâneo e meio doido era típico dela. Ela não ligava muito para o que iam pensar e por agir exatamente ao contrário, eu a admirava. Fiquei muito tempo olhando aquela foto. É que o sorriso dela me trazia… calma. […]

Alguns dias depois, na sala de aula, ela veio até mim, dando pulinhos, dizendo que leu uma crônica minha no jornal da cidade e que eu tinha muito jeito com as palavras. Ela trabalhava numa editora, e eles estavam procurando uma ~escritora fantasma~. “Você é perfeita pro cargo”, ela me disse. “Vamos tomar um café no fim de semana, vou te explicar qual é o plano. Deixa que eu já sei até o lugar! E relaxa: você é minha convidada”. Estremeci completamente… e aceitei. Ela me abraçou, empolgada, sem desconfiar que, na minha mente, eu iria com ela pra qualquer lugar. 

Não dormi direito até o dia do café. Ela aparecia nos meus sonhos, inconscientemente: eu não tinha controle, e me deixava levar […]. No dia do café, eu estava ensandecida. Não sabia como me portar, não sabia como parar de tremer enquanto a esperava. Ela chegou, sorridente, e conversamos por horas sobre todas as possibilidades de trabalho. Eu estava animada para trabalhar com a escrita, mas, mais do que isso, estava animada por poder vê-la sempre e ficar por perto. Depois de algumas xícaras e muita conversa, vi um desejo meu se realizar: fui convidada para ir até a casa dela. Ela queria me emprestar livros sobre o processo criativo, sobre os temas que tínhamos que desenvolver pra editora. De um jeito doce e divertido, foi levantando da mesa, pegando a bolsa: “Vamos? Tem vinho na geladeira. Li em algum lugar que tomar vinho ajuda a desenvolver melhor nossas ideias”. Eu ri. Se ajudava mesmo eu não sei, mas é claro que queria descobrir. […]

Minha visão estava um pouco turva na casa dela. “Já estamos bêbadas?”, me perguntei. Ela me tirava pra dançar, aumentava o som e ria lindamente. Eu já não sabia o que fazer. Não sabia se era a minha mente, se era realmente ela, se éramos nós. Se era a música, se era o barulho do mar e a vista incrível da varanda, se era curiosidade, vontade, desespero, solidão ou uma mistura de tudo isso. Com a taça na mão, ela parou no meio da sala e abriu o jogo: “Você deve ter reparado que eu não gosto só de como você escreve, não? Eu gosto de você… toda”. O coração disparado. Minha mente aos berros: “Pirou, tá doida, achei que só eu estivesse interessada, aliás, nem sei como é que se demonstra isso, nunca senti nada assim por nenhuma mulher, e agora, agora que ela disse, o que eu faço, como eu reajo, o que eu…” Ela chegou mais perto, me olhou bem nos olhos, como se tivesse lido tudo que eu estava pensando, porque disse de um jeito que eu nunca ouvi alguém dizer: “Agora… você faz o que quiser”. 

Parecia simples: como nos meus sonhos, era só me deixar levar. Aquele questionário dentro de mim precisava silenciar. Ela continuou me olhando, intensa, e eu procurei respirar. Na verdade, quanto menos racional, melhor, não é isso que dizem por aí? Passei a mão pelo cabelo dela, que chegou ainda mais perto: “Vem descobrir…”. Eu a beijei rápida, desesperada, mas não houve desencaixe: porque ela também queria ceder. Também queria ver, tirar o véu, descobrir o céu da boca. Éramos delicadas uma com a outra e ao mesmo tempo não. Colocávamos intenção, coração, tínhamos jeito, tínhamos cuidado, usávamos as mãos. Tínhamos pressa, queríamos viver, queríamos ser. Como flor que desabrocha sem querer, sem ninguém perceber: nós apenas éramos tudo aquilo. E a constatação de que há flores no Universo foi das coisas mais lindas que eu já presenciei. […]

Ela adormeceu primeiro e eu aproveitei para ir embora com o sol nascendo. Minha cabeça estava a mil. Saí daquele transe paralelo, e comecei, aos poucos, a voltar a mim. Aquilo tinha sido… loucura. Dessas coisas que a gente faz e esquece depois. Mas eu não ia esquecer: tampouco repetir. Algo dentro de mim incomodava, e lá fora o mundo inteiro ia contra tudo que eu sentia. “É melhor desaparecer”, me ouvi dizendo. Eu não conseguia lidar. Não conseguia digerir. E não queria tentar explicar, muito menos para ela. Cancelei o curso de tecnologia. Dei uma desculpa qualquer na editora. Apaguei o número de telefone, mas ela me ligava, dizendo que não sabia como, só sabia que estava apaixonada. Ignorei. Não sabia que amor podia ser de outra cor que não fosse aquela que sempre me ensinaram. Não sabia que amor não escolhe gênero. Reprimi todas as vezes que tive vontade de encontrá-la. Deixei o tempo mostrar que eu estava errada e que aquilo tudo ia passar. Mas a verdade é que só o tempo passou… Soube, alguns meses depois, que ela havia mudado de cidade. Nunca mais tive notícia – e também não fui procurar.

Na minha mente, ela fica sendo aquela parte minha que nunca pude realizar, uma fantasia que não passa, uma máscara que não cai. Toda vez que saio, visualizo o rosto dela em outras mulheres. É difícil me abrir novamente. Não vi que eu podia ter sido uma ponte para algo muito maior: o início de uma luta pelo amor. Não vi, mas entendi: que a gente não ama um corpo, não ama os órgãos, não ama os traços femininos ou masculinos do rosto de alguém – a gente ama as linhas de expressão, as histórias de vida, o jeito, a suavidade, o que aquelas linhas contam. A gente ama pela leveza, pelo brilho no olhar que o outro nos traz. E essa pessoa pode ser quem você quiser, moldada pela sociedade ou não, como nos seus sonhos ou não. Arrisco dizer que ela pode ser exatamente como você quer – se você deixar.

E ela… ela era. A primeira mulher com quem eu quis me perder, em quem eu quis mergulhar, depois de tanto tempo olhando a superfície. Alguém que provavelmente viu tudo que eu vi, sentiu tudo que eu senti, na mesma velocidade, na mesma rapidez. Por instantes, mergulhei… e o amor pediu pra entrar. Mas dei ouvidos aos ruídos externos… e vi, como areia fina que escorre entre os dedos, a chance de ser um pouco mais feliz escapar.

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[Este texto é a base do episódio 5 do meu podcast! Clique aqui para ouvir].

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